quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Entre o sono e sonho,



Entre mim e o que em mim

É o quem eu me suponho

Corre um rio sem fim.


Passou por outras margens,

Diversas mais além,

Naquelas várias viagens

Que todo o rio tem.


Chegou onde hoje habito

A casa que hoje sou.

Passa, se eu me medito;

Se desperto, passou.


E quem me sinto e morre

No que me liga a mim

Dorme onde o rio corre -

Esse rio sem fim.

(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Quando as crianças brincam



Quando as crianças brincam

E eu as oiço brincar,

Qualquer coisa em minha alma

Começa a se alegrar.


E toda aquela infância

Que não tive me vem,

Numa onda de alegria

Que não foi de ninguém.


Se quem fui é enigma,

E quem serei visão,

Quem sou ao menos sinta

Isto no coração.
5-9-1933

Fernando Pessoa

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Vendaval



Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,
Não achas, soprando por tanta solidão,
Deserto, penhasco, coval mais vazio
Que o meu coração!


Indômita praia, que a raiva do oceano
Faz louco lugar, caverna sem fim,
Não são tão deixados do alegre e do humano
Como a alma que há em mim!


Mas dura planície, praia atra em fereza,
Só têm a tristeza que a gente lhes vê
E nisto que em mim é vácuo e tristeza
É o visto o que vê.


Ah, mágoa de ter consciência da vida!
Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Que rasgas os robles - teu pulso divida
Minh'alma do mundo!


Ah, se, como levas as folhas e a areia,
A alma que tenho pudesses levar -
Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia
De eu ter que pensar!


Abismo da noite, da chuva, do vento,
Mar torvo do caos que parece volver -
Porque é que não entras no meu pensamento
Para ele morrer?


Horror de ser sempre com vida a consciência!
Horror de sentir a alma sempre a pensar!
Arranca-me, é vento; do chão da existência,
De ser um lugar!
E, pela alta noite que fazes mais'scura,
Pelo caos furioso que crias no mundo,
Dissolve em areia esta minha amargura,
Meu tédio profundo.


E contra as vidraças dos que há que têm lares,
Telhados daqueles que têm razão,
Atira, já pária desfeito dos ares,
O meu coração!


Meu coração triste, meu coração ermo,
Tornado a substância dispersa e negada
Do vento sem forma, da noite sem termo,
Do abismo e do nada!

(Fernando Pessoa, 16-2-1920.)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A tua voz fala amorosa...



Qual é a tarde por achar

Em que teremos todos razão

E respiraremos o bom ar

Da alameda sendo verão,


Ou, sendo inverno, baste 'star

Ao pé do sossego ou do fogão?

Qual é a tarde por voltar?

Essa tarde houve, e agora não.


Qual é a mão cariciosa

Que há de ser enfermeira minha -

Sem doenças minha vida ousa -

Oh, essa mão é morta e osso ...

Só a lembrança me acarinha

O coração com que não posso.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Feliz dia para quem é


Feliz dia para quem é
O igual do dia,
E no exterior azul que vê
Simples confia !


Azul do céu faz pena a quem
Não pode ser
Na alma um azul do céu também
Com que viver

Ah, e se o verde com que estão
Os montes quedos
Pudesse haver no coração
E em seus segredos !

Mas vejo quem devia estar
Igual do dia
Insciente e sem querer passar.
Ah, a ironia

De só sentir a terra e o céu
Tão belo ser
Quem de si sente que perdeu
A alma p’ra os ter !
(Fernando Pessoa )

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Sorriso audível das folhas

Sorriso audível das folhas

Não és mais que a brisa ali

Se eu te olho e tu me olhas,

Quem primeiro é que sorri?

O primeiro a sorrir ri.


Ri e olha de repente

Para fins de não olhar

Para onde nas folhas sente

O som do vento a passar

Tudo é vento e disfarçar.


Mas o olhar, de estar olhando

Onde não olha, voltou

E estamos os dois falando

O que se não conversou

Isto acaba ou começou?

Fernando Pessoa

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Leva-me longe, meu suspiro fundo,



Leva-me longe, meu suspiro fundo,
Além do que deseja e que começa,
Lá muito longe, onde o viver se esqueça
Das formas metafísicas do mundo.

Aí que o meu sentir vago e profundo
O seu lugar exterior conheça,
Aí durma em fim, aí enfim faleça
O cintilar do espírito fecundo.

Aí ... mas de que serve imaginar
Regiões onde o sonho é verdadeiro
Ou terras para o ser atormentar ?

É elevar demais a aspiração,
E, falhado esse sonho derradeiro,
Encontrar mais vazio o coração.
(Fernando Pessoa)

domingo, 17 de outubro de 2010

Durmo. Se sonho, ao despertar não sei



Durmo. Se sonho, ao despertar não sei

Que coisas eu sonhei.
Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto
Para um espaço aberto
Que não conheço, pois que despertei
Para o que inda não sei.
Melhor é nem sonhar nem não sonhar
E nunca despertar.
Fernando Pessoa

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Menino da Sua Mãe

No plaino abandonado
Que a morta brisa aquece,
De balas traspassado -
Duas, de lado a lado -,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe".

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe.
Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço...
Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.
(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O INFANTE



O infante (em Mensagem)

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te portuguez..
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 28 de setembro de 2010

O sol às casas, como a montes

O sol às casas, como a montes,
Vagamente doura.
Na cidade sem horizontes
Uma tristeza loura.

Com a sombra da tarde desce
E um pouco dói
Porque quanto é tarde
Tudo quanto foi.

Nesta hora mais que em outra choro
O que perdi.
Em cinza e ouro o rememoro
E nunca o vi.

Felicidade por nascer,
Mágoa a acabar,
Ânsia de só aquilo ser
Que há-de ficar -
Sussurro sem que se ouça, palma
Da isenção.
Ó tarde, fica noite, e alma
Tenha perdão.
(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Súplica



Agora que o silêncio é um mar sem ondas,

E que nele posso navegar sem rumo,

Não respondas

Às urgentes perguntas

Que te fiz.

Deixa-me ser feliz

Assim,

Já tão longe de ti como de mim.


Perde-se a vida a desejá-la tanto.

Só soubemos sofrer, enquanto

O nosso amor Durou.

Mas o tempo passou,

Há calmaria...

Não perturbes a paz que me foi dada.

Ouvir de novo a tua voz seria

Matar a sede com água salgada.

(Miguel Torga)

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Criança Desconhecida

Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,
Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Brinca na poeira, brinca!
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.

O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as outras estão sujas.
Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta.
Alberto Caeiro

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Intervalo

Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado -
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca -
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.
Fernando Pessoa

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Emissário de um rei desconhecido

Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anômalo sentido...

Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me desdém
Por este humano povo entre quem lido...

Não sei se existe o Rei que me mandou.
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

Mas há ! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Não estou pensando em nada

Não estou pensando em nada
E essa coisa central, que é coisa nenhuma,
É-me agradável como o ar da noite,
Fresco em contraste com o verão quente do dia,

Não estou pensando em nada, e que bom!

Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida...
Não estou pensando em nada.
E como se me tivesse encostado mal.
Uma dor nas costas, ou num lado das costas,
Há um amargo de boca na minha alma:
É que, no fim de contas,
Não estou pensando em nada,
Mas realmente em nada,
Em nada...
(Álvaro de Campos)

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Só o Ter


Só o ter flores pela vista fora

Nas áleas largas dos jardins exatos

Basta para podermos

Achar a vida leve.


De todo o esforço seguremos quedas

As mãos, brincando, pra que nos não tome

Do pulso, e nos arraste.

E vivamos assim,


Buscando o mínimo de dor ou gozo,

Bebendo a goles os instantes frescos,

Translúcidos como água

Em taças detalhadas,


Da vida pálida levando apenas

As rosas breves, os sorrisos vagos,

E as rápidas carícias

Dos instantes volúveis.


Pouco tão pouco pesará nos braços

Com que, exilados das supernas luzes,

‘Scolherrnos do que fomos

O melhor pra lembrar


Quando, acabados pelas

Parcas, formos, vultos solenes de repente antigos,

E cada vez mais sombras,

Ao encontro fatal


Do barco escuro no soturno rio,

E os nove abraços do horror estígio,

E o regaço insaciável

Da pátria de Plutão.

(Ricardo Reis )

quinta-feira, 22 de julho de 2010

O Amor

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de *dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe

O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Uns


Uns, com os olhos postos no passado,

Vêem o que não vêem: outros, fitos

Os mesmos olhos no futuro, vêem

O que não pode ver-se.


Por que tão longe ir pôr o que está perto -

A segurança nossa? Este é o dia,

Esta é a hora, este o momento, isto

É quem somos, e é tudo.


Perene flui a interminável hora

Que nos confessa nulos.

No mesmo hausto

Em que vivemos, morreremos.

Colhe o dia, porque és ele.

(Ricardo Reis )

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Pela rua já serena



Pela rua já serena

Vai a noite

Não sei de que tenho pena,

Nem se é pena isto que tenho...


Pobres dos que vão sentindo

Sem saber do coração!

Ao longe, cantando e rindo,

Um grupo vai sem razão...


E a noite e aquela alegria

E o que medito a sonhar

Formam uma alma vazia

Que paira na orla do ar...

(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Deixa-me ouvir o que não ouço...



Deixa-me ouvir o que não ouço...

Não é a brisa ou o arvoredo;

É outra coisa intercalada...


É qualquer coisa que não posso

Ouvir senão em segredo,

E que talvez não seja nada...


Deixa-me ouvir... Não fales alto !

Um momento !... Depois o amor,

Se quiseres... Agora cala !


Tênue, longínquo sobressalto

Que substitui a dor,

Que inquieta e embala...


O quê? Só a brisa entre a folhagem?

Talvez... Só um canto pressentido?

Não sei, mas custa amar depois...

Sim, torna a mim, e a paisagem

E a verdadeira brisa, ruído...

Vejo-me, somos dois...

(Fernando Pessoa)

terça-feira, 29 de junho de 2010

Maravilha-te, memória!

MARAVILHA-TE, memória!
Lembras o que nunca foi,
E a perda daquela história
Mais que uma perda me dói.

Meus contos de fadas meus -
Rasgaram-lhe a última folha...
Meus cansaços são ateus
Dos deuses da minha escolha...

Mas tu, memória, condizes
Com o que nunca existiu...
Torna-me aos dias felizes
E deixa chorar quem riu.
(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 28 de junho de 2010

A minha vida é um barco abandonado


A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado ?

Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da ação sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.

Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.
(Fernando Pessoa )

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Da minha idéia do mundo



Da minha idéia do mundo

Caí...

Vácuo além do profundo,

Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si-próprio, caos

De ser pensado como ser...

Escada absoluta sem degraus...

Visão que se não pode ver...


Além-Deus ! Além-Deus! Negra calma...

Clarão do Desconhecido...

Tudo tem outro sentido, ó alma,

Mesmo o ter-um-sentido...

(Fernando Pessoa)

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Da Minha Aldeia



Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe
de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos
nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.

Alberto Caeiro

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Corpus Christi



Porque se celebra o dia do Corpo de Deus

A Solenidade Litúrgica do Corpo e Sangue de Cristo, conhecida popularmente como "Corpo de Deus", é, de acordo com a lei geral da Igreja, um dos dez dias festivos de preceito.

O dia do Corpo de Deus é uma exultação popular à Eucaristia, sendo manifestada no 60° dia após a Páscoa e forçosamente uma quinta-feira, fazendo assim a união íntima com a Última Ceia de quinta-feira Santa, daí o seu carácter de feriado móvel.

Começou a ser celebrado há mais de sete séculos e meio, em 1246, na cidade belga de Liège, tendo sido alargada à Igreja universal pelo Papa Urbano IV através da bula "Transiturus", em 1264, dotando-a de missa e ofício próprios.

Chegou a Portugal provavelmente nos finais do século XIII e tomou a denominação de Festa de Corpo de Deus, embora o mistério e a festa da Eucaristia seja o Corpo de Cristo.

Bom feriado para todos

terça-feira, 25 de maio de 2010

VELHO E A FLOR



Por céus e mares eu andei,
Vi um poeta e vi um rei
Na esperança de saber
O que é o amor.

Ninguém sabia me dizer,
Eu já queria até morrer
Quando um velhinho
Com uma flor assim falou:

O amor é o carinho,
É o espinho que não se vê em cada flor.
É a vida quando
Chega sangrando aberta
em pétalas de amor.
(Vinícius de Moraes)

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Onde, em jardins exaustos



Onde, em jardins exaustos

Nada já tenha fim,

Forma teus fúteis faustos

De tédio e de cetim.

Meus sonhos são exaustos,

Dorme comigo e em mim.

(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Criança Desconhecida


Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,
Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Brinca na poeira, brinca!
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.

O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as outras estão sujas.
Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta.
Alberto Caeiro

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Houve um ritmo no meu sono



Houve um ritmo no meu sono.

Quando acordei o perdi.

Por que saí do abandono

De mim mesmo, em que vivi ?


Não sei que era o que não era.

Sei que suave me embalou,

Como se o embalar quisera

Tornar-me outra vez quem sou.


Houve uma música finda

Quando acordei de a sonhar,

Mas não morreu : dura ainda

No que me faz não pensar.

(Fernando Pessoa)

terça-feira, 27 de abril de 2010

As Bolas de Sabão



As bolas de sabão que esta criança

Se entretém a largar de uma palhinha

São translucidamente uma filosofia toda.

Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,

Amigas dos olhos como as cousas,

São aquilo que são

Com uma precisão redondinha e aérea,

E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,

Pretende que elas são mais do que parecem ser.


Algumas mal se vêem no ar lúcido.

São como a brisa que passa e mal toca nas flores

E que só sabemos que passa

Porque qualquer cousa se aligeira em nós

E aceita tudo mais nitidamente.

Alberto Caeiro

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Não posso adiar o amor



Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

Poema - António Ramos Rosa
Pintura - Nela Vicente

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Passava eu na estrada pensando impreciso



Passava eu na estrada pensando impreciso,

Triste à minha moda. Cruzou um garoto,

olhou-me, e um sorriso

Agradou-lhe a cara toda.


Bem sei, bem sei, sorrirá assim

A um outro qualquer.

Mas então sorriu assim para mim...

Que mais posso eu querer?


Não sou nesta vida nem eu nem ninguém,

Vou sem ser nem prazo...

Que ao menos na estrada me sorria alguém

Ainda que por acaso.
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 13 de abril de 2010

Vento que passas



Vento que passas
Nos pinheirais
Quantas desgraças
Lembram teus ais.

Quanta tristeza,
Sem o perdão
De chorar, pesa
No coração.

E ó vento vago
Das solidões
Traze um afago
Aos corações.

À dor que ignoras
Presta os teus ais,
Vento que choras
Nos pinheirais
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 6 de abril de 2010

Há quanto tempo não canto



HÁ QUANTO tempo não canto
Na muda voz de sentir.
E tenho sofrido tanto
Que chorar fora sorrir.

Há quanto tempo não sinto
De maneira a o descrever,
Nem em ritmos vivos minto
O que não quero dizer...

Há quanto tempo me fecho
À chave dentro de mim.
E é porque já não me queixo
Que as queixas não têm fim.

Há quanto tempo assim duro
Sem vontade de falar!
Já estou amigo do escuro
Não quero o sal nem o ar.

Foi-me tão pesada e crescida
A tristeza que ficou
Que ficou toda a vida
Para cantar não sonhou.
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 30 de março de 2010

Talvez...

Talvez não ser,
é ser sem que tu sejas,
sem que vás cortando
o meio dia com uma
flor azul,
sem que caminhes mais tarde
pela névoa e pelos tijolos,
sem essa luz que levas na mão
que, talvez, outros não verão dourada,
que talvez ninguém
soube que crescia
como a origem vermelha da rosa,
sem que sejas, enfim,
sem que viesses brusca, incitante
conhecer a minha vida,
rajada de roseira,
trigo do vento,

E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos...

Pablo Neruda

quarta-feira, 24 de março de 2010

Bate a luz no cimo

Bate a luz no cimo
Da montanha, vê...
Sem querer eu cismo
Mas não sei em quê....

Não sei que perdi
Ou que não achei...
Vida que vivi,
Que mal eu a amei !...

Hoje quero tanto
Que o não posso ter,
De manhã há o pranto
E ao anoitecer...

Tomara eu ter jeito
Para ser feliz...
Como o mundo é estreito,
E o pouco que eu quis !

Vai morrendo a luz
No alto da montanha...
Como um rio a flux
A minha alma banha,

Mas não me acarinha,
Não me acalma nada...
Pobre criancinha
Perdida na estrada !...
Fernando Pessoa

segunda-feira, 22 de março de 2010

ABISMO



OLHO O TEJO, e de tal arte

Que me esquece olhar olhando,

E súbito isto me bate

De encontro ao devaneando -

O que é ser-rio, e correr?

O que é está-lo eu a ver?


Sinto de repente pouco,

Vácuo, o momento, o lugar.

Tudo de repente é oco -

Mesmo o meu estar a pensar.

Tudo - eu e o mundo em redor -

Fica mais que exterior.


Perde tudo o ser, ficar,

E do pensar se me some.

Fico sem poder ligar

Ser, idéia, alma de nome

A mim, à terra e aos céus...


E súbito encontro Deus.

(Fernando Pessoa )

Parece estar calor...

Parece estar calor, mas nasce
Subitamente
Contra a minha face
Uma brisa fresca que se sente.

Assim também - poder comparar
É que é poesia -
A alma sente-se a esperar,
Mas não conhece em que confia.
(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 19 de março de 2010

Dia do PAI

O Pai

Terra de semente inculta e bravia,
terra onde não há esteiros ou caminhos,
sob o sol minha vida se alonga e estremece.

Pai, nada podem teus olhos doces,
como nada puderam as estrelas
que me abraçam os olhos e as faces.

Escureceu-me a vista o mal de amor
e na doce fonte do meu sonho
outra fonte tremida se reflecte.

Depois... Pergunta a Deus porque me deram
o que me deram e porque depois
conheci a solidão do céu e da terra.

Olha, minha juventude foi um puro
botão que ficou por rebentar e perde
a sua doçura de seiva e de sangue.

O sol que cai e cai eternamente
cansou-se de a beijar... E o outono.
Pai, nada podem teus olhos doces.

Escutarei de noite as tuas palavras:
... menino, meu menino...

E na noite imensa
com as feridas de ambos seguirei.

Pablo Neruda

quinta-feira, 18 de março de 2010

Tenho sono em pleno dia

Tenho sono em pleno dia.
Não sei de que, tenho pena.
Sou como uma maresia.
Dormi mal e a alma é pequena.

Nos tanques da quinta de outrem
É que gorgoleja bem.
Quanto as saudades encontrem,
Tanto minha alma não tem.
(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 15 de março de 2010

Li Hoje



Li hoje quase duas páginas

Do livro dum poeta místico,

E ri como quem tem chorado muito.


Os poetas místicos são filósofos doentes,

E os filósofos são homens doidos.


Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem

E dizem que as pedras têm alma

E que os rios têm êxtases ao luar.


Mas flores, se sentissem, não eram flores,

Eram gente;

E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;

E se os rios tivessem êxtases ao luar,

Os rios seriam homens doentes.


É preciso não saber o que são flores e pedras e rios

Para falar dos sentimentos deles.

Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,

É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.

Graças a Deus que as pedras são só pedras,

E que os rios não são senão rios,

E que as flores são apenas flores.


Por mim, escrevo a prosa dos meus versos

E fico contente,

Porque sei que compreendo a Natureza por fora;

E não a compreendo por dentro

Porque a Natureza não tem dentro;

Senão não era a Natureza.

(Alberto Caeiro)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços...

Abdicação

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
(Fernando Pessoa)
(Cancioneiro)

quinta-feira, 11 de março de 2010

Nada. Passaram nuvens e eu fiquei

NADA. Passaram nuvens e eu fiquei...

No ar limpo não há rasto.

Surgiu a lua de onde já não sei,

Num claro luar vasto.


Todo o espaço da noite fica cheio

De um peso sossegado...

Onde porei o meu futuro, e o enleio

Que o liga ao meu passado?

(Fernando Pessoa)