terça-feira, 30 de novembro de 2010

Vendaval



Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,
Não achas, soprando por tanta solidão,
Deserto, penhasco, coval mais vazio
Que o meu coração!


Indômita praia, que a raiva do oceano
Faz louco lugar, caverna sem fim,
Não são tão deixados do alegre e do humano
Como a alma que há em mim!


Mas dura planície, praia atra em fereza,
Só têm a tristeza que a gente lhes vê
E nisto que em mim é vácuo e tristeza
É o visto o que vê.


Ah, mágoa de ter consciência da vida!
Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Que rasgas os robles - teu pulso divida
Minh'alma do mundo!


Ah, se, como levas as folhas e a areia,
A alma que tenho pudesses levar -
Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia
De eu ter que pensar!


Abismo da noite, da chuva, do vento,
Mar torvo do caos que parece volver -
Porque é que não entras no meu pensamento
Para ele morrer?


Horror de ser sempre com vida a consciência!
Horror de sentir a alma sempre a pensar!
Arranca-me, é vento; do chão da existência,
De ser um lugar!
E, pela alta noite que fazes mais'scura,
Pelo caos furioso que crias no mundo,
Dissolve em areia esta minha amargura,
Meu tédio profundo.


E contra as vidraças dos que há que têm lares,
Telhados daqueles que têm razão,
Atira, já pária desfeito dos ares,
O meu coração!


Meu coração triste, meu coração ermo,
Tornado a substância dispersa e negada
Do vento sem forma, da noite sem termo,
Do abismo e do nada!

(Fernando Pessoa, 16-2-1920.)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A tua voz fala amorosa...



Qual é a tarde por achar

Em que teremos todos razão

E respiraremos o bom ar

Da alameda sendo verão,


Ou, sendo inverno, baste 'star

Ao pé do sossego ou do fogão?

Qual é a tarde por voltar?

Essa tarde houve, e agora não.


Qual é a mão cariciosa

Que há de ser enfermeira minha -

Sem doenças minha vida ousa -

Oh, essa mão é morta e osso ...

Só a lembrança me acarinha

O coração com que não posso.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Feliz dia para quem é


Feliz dia para quem é
O igual do dia,
E no exterior azul que vê
Simples confia !


Azul do céu faz pena a quem
Não pode ser
Na alma um azul do céu também
Com que viver

Ah, e se o verde com que estão
Os montes quedos
Pudesse haver no coração
E em seus segredos !

Mas vejo quem devia estar
Igual do dia
Insciente e sem querer passar.
Ah, a ironia

De só sentir a terra e o céu
Tão belo ser
Quem de si sente que perdeu
A alma p’ra os ter !
(Fernando Pessoa )

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Sorriso audível das folhas

Sorriso audível das folhas

Não és mais que a brisa ali

Se eu te olho e tu me olhas,

Quem primeiro é que sorri?

O primeiro a sorrir ri.


Ri e olha de repente

Para fins de não olhar

Para onde nas folhas sente

O som do vento a passar

Tudo é vento e disfarçar.


Mas o olhar, de estar olhando

Onde não olha, voltou

E estamos os dois falando

O que se não conversou

Isto acaba ou começou?

Fernando Pessoa