terça-feira, 28 de setembro de 2010

O sol às casas, como a montes

O sol às casas, como a montes,
Vagamente doura.
Na cidade sem horizontes
Uma tristeza loura.

Com a sombra da tarde desce
E um pouco dói
Porque quanto é tarde
Tudo quanto foi.

Nesta hora mais que em outra choro
O que perdi.
Em cinza e ouro o rememoro
E nunca o vi.

Felicidade por nascer,
Mágoa a acabar,
Ânsia de só aquilo ser
Que há-de ficar -
Sussurro sem que se ouça, palma
Da isenção.
Ó tarde, fica noite, e alma
Tenha perdão.
(Fernando Pessoa)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Súplica



Agora que o silêncio é um mar sem ondas,

E que nele posso navegar sem rumo,

Não respondas

Às urgentes perguntas

Que te fiz.

Deixa-me ser feliz

Assim,

Já tão longe de ti como de mim.


Perde-se a vida a desejá-la tanto.

Só soubemos sofrer, enquanto

O nosso amor Durou.

Mas o tempo passou,

Há calmaria...

Não perturbes a paz que me foi dada.

Ouvir de novo a tua voz seria

Matar a sede com água salgada.

(Miguel Torga)

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Criança Desconhecida

Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,
Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
Acho-te graça por nunca te ter visto antes,
E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,
Nem aqui vinhas.
Brinca na poeira, brinca!
Aprecio a tua presença só com os olhos.
Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.

O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as outras estão sujas.
Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão,
Sabes que te cabe na mão.
Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?
Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta.
Alberto Caeiro

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Intervalo

Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado -
Aquele amor cheio de crença e medo
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?

Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca -
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.
Fernando Pessoa

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Emissário de um rei desconhecido

Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anômalo sentido...

Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me desdém
Por este humano povo entre quem lido...

Não sei se existe o Rei que me mandou.
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

Mas há ! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
(Fernando Pessoa)