quinta-feira, 29 de julho de 2010

Não estou pensando em nada

Não estou pensando em nada
E essa coisa central, que é coisa nenhuma,
É-me agradável como o ar da noite,
Fresco em contraste com o verão quente do dia,

Não estou pensando em nada, e que bom!

Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida...
Não estou pensando em nada.
E como se me tivesse encostado mal.
Uma dor nas costas, ou num lado das costas,
Há um amargo de boca na minha alma:
É que, no fim de contas,
Não estou pensando em nada,
Mas realmente em nada,
Em nada...
(Álvaro de Campos)

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Só o Ter


Só o ter flores pela vista fora

Nas áleas largas dos jardins exatos

Basta para podermos

Achar a vida leve.


De todo o esforço seguremos quedas

As mãos, brincando, pra que nos não tome

Do pulso, e nos arraste.

E vivamos assim,


Buscando o mínimo de dor ou gozo,

Bebendo a goles os instantes frescos,

Translúcidos como água

Em taças detalhadas,


Da vida pálida levando apenas

As rosas breves, os sorrisos vagos,

E as rápidas carícias

Dos instantes volúveis.


Pouco tão pouco pesará nos braços

Com que, exilados das supernas luzes,

‘Scolherrnos do que fomos

O melhor pra lembrar


Quando, acabados pelas

Parcas, formos, vultos solenes de repente antigos,

E cada vez mais sombras,

Ao encontro fatal


Do barco escuro no soturno rio,

E os nove abraços do horror estígio,

E o regaço insaciável

Da pátria de Plutão.

(Ricardo Reis )

quinta-feira, 22 de julho de 2010

O Amor

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de *dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pr'a saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe

O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
(Fernando Pessoa)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Uns


Uns, com os olhos postos no passado,

Vêem o que não vêem: outros, fitos

Os mesmos olhos no futuro, vêem

O que não pode ver-se.


Por que tão longe ir pôr o que está perto -

A segurança nossa? Este é o dia,

Esta é a hora, este o momento, isto

É quem somos, e é tudo.


Perene flui a interminável hora

Que nos confessa nulos.

No mesmo hausto

Em que vivemos, morreremos.

Colhe o dia, porque és ele.

(Ricardo Reis )

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Pela rua já serena



Pela rua já serena

Vai a noite

Não sei de que tenho pena,

Nem se é pena isto que tenho...


Pobres dos que vão sentindo

Sem saber do coração!

Ao longe, cantando e rindo,

Um grupo vai sem razão...


E a noite e aquela alegria

E o que medito a sonhar

Formam uma alma vazia

Que paira na orla do ar...

(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Deixa-me ouvir o que não ouço...



Deixa-me ouvir o que não ouço...

Não é a brisa ou o arvoredo;

É outra coisa intercalada...


É qualquer coisa que não posso

Ouvir senão em segredo,

E que talvez não seja nada...


Deixa-me ouvir... Não fales alto !

Um momento !... Depois o amor,

Se quiseres... Agora cala !


Tênue, longínquo sobressalto

Que substitui a dor,

Que inquieta e embala...


O quê? Só a brisa entre a folhagem?

Talvez... Só um canto pressentido?

Não sei, mas custa amar depois...

Sim, torna a mim, e a paisagem

E a verdadeira brisa, ruído...

Vejo-me, somos dois...

(Fernando Pessoa)