terça-feira, 27 de abril de 2010

As Bolas de Sabão



As bolas de sabão que esta criança

Se entretém a largar de uma palhinha

São translucidamente uma filosofia toda.

Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,

Amigas dos olhos como as cousas,

São aquilo que são

Com uma precisão redondinha e aérea,

E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,

Pretende que elas são mais do que parecem ser.


Algumas mal se vêem no ar lúcido.

São como a brisa que passa e mal toca nas flores

E que só sabemos que passa

Porque qualquer cousa se aligeira em nós

E aceita tudo mais nitidamente.

Alberto Caeiro

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Não posso adiar o amor



Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

Poema - António Ramos Rosa
Pintura - Nela Vicente

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Passava eu na estrada pensando impreciso



Passava eu na estrada pensando impreciso,

Triste à minha moda. Cruzou um garoto,

olhou-me, e um sorriso

Agradou-lhe a cara toda.


Bem sei, bem sei, sorrirá assim

A um outro qualquer.

Mas então sorriu assim para mim...

Que mais posso eu querer?


Não sou nesta vida nem eu nem ninguém,

Vou sem ser nem prazo...

Que ao menos na estrada me sorria alguém

Ainda que por acaso.
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 13 de abril de 2010

Vento que passas



Vento que passas
Nos pinheirais
Quantas desgraças
Lembram teus ais.

Quanta tristeza,
Sem o perdão
De chorar, pesa
No coração.

E ó vento vago
Das solidões
Traze um afago
Aos corações.

À dor que ignoras
Presta os teus ais,
Vento que choras
Nos pinheirais
(Fernando Pessoa)

terça-feira, 6 de abril de 2010

Há quanto tempo não canto



HÁ QUANTO tempo não canto
Na muda voz de sentir.
E tenho sofrido tanto
Que chorar fora sorrir.

Há quanto tempo não sinto
De maneira a o descrever,
Nem em ritmos vivos minto
O que não quero dizer...

Há quanto tempo me fecho
À chave dentro de mim.
E é porque já não me queixo
Que as queixas não têm fim.

Há quanto tempo assim duro
Sem vontade de falar!
Já estou amigo do escuro
Não quero o sal nem o ar.

Foi-me tão pesada e crescida
A tristeza que ficou
Que ficou toda a vida
Para cantar não sonhou.
(Fernando Pessoa)